Parte I – Preparativos
Os países do oriente médio formam um enclave. Tem cultura e costumes específicos milenares que pouco ou quase nada foram alterados durante milênios. Isso é ruim? Não necessariamente. Há valores morais e éticos que os ocidentais deveriam observar e restaurar mas, há outros costumes que deveriam ser modernizados. Na maioria, a diferença está na forma e abordagem e não no conteúdo. Valores como a família, o respeito as leis, a religiosidade, a história e os costumes são valores que devem ser preservados.
A maior parte dos países árabes ou persas, caso do Irã, é governada por monarquia mesmo que haja parlamento. A autocracia mantém os valores do estado, garantindo a sobrevivência dos valores, cultura e religião. Também mantem a ordem uma vez que há várias correntes do Islã que, ao interpretarem de modo diverso o Corão, também interpretam de modo diverso os costumes a serem seguidos e assim, um conflito social sempre está pronto para explodir.
Estamos em um desses países juntos com a família Assuam. Tureb Assuam e Nagila Assuam tem uma linda filha, Somayya. Jovem extrovertida que ama os pais, os respeita e respeita os valores culturais, Somayya estuda literatura árabe. Sua vida é típica das mulheres da região.
O pai, um homem rico, influente, ex-membro do parlamento e ligado ao monarca, desde cedo já havia contratado o casamento de sua filha com o filho de um importante membro da realeza. O noivo, Nagib Tureissam, estudava relações internacionais e foi preparado para assumir importante posto na administração do país.
O contrato de casamento era festejado por ambas as famílias. Os noivos costumavam se ver mas, pela tradição nenhum contato físico. No entanto, a admiração e o carinho de ambos demonstrava o surgimento de um amor sincero. Os noivos achavam que tiveram sorte pois ambos eram jovens, bonitos e ricos. Tudo indicava que o casamento entre os dois seria marcante tanto para eles quanto para suas famílias. O amor surgiu mas, no mundo árabe o comum é pensar que amor é algo que vem com o tempo.
O casamento havia sido marcado para daqui há algumas semanas. Os preparativos no mundo árabe demanda muitas ações. Exige um vultoso orçamento e tempo afinal, lá a vida anda um pouco mais devagar.
Para a noiva, entre os procedimentos como a escolha do vestido, das flores e os ensaios, há um que as deixa constrangidas. O Exame para expedição do certificado de virgindade. Na cultura árabe um casamento não é realizado caso a noiva não seja mais virgem. Não ser virgem pode levar à morte. Modernamente, outros exames clínicos são solicitados mas o exame fundamental é o da virgindade.
O exame afinal foi feito e o certificado expedido A virgindade foi comprovada. Os preparativos poderiam continuar.
Parte II – Os preparativos interrompidos
Como faziam todas as manhãs, os pais de Somayya aguardavam-na para o café da manhã. Após, cada uma ia para os seus afazeres. Somayya ia para a faculdade, o pai ao escritório e a mãe gerenciava as atividades da casa dando instruções aos empregados.
Os pais já estavam sentados aguardando apenas sua amada filha mas, ela se demorou. Nagila pede a uma das criadas que vá até o quarto de Somayya apressá-la.
Poucos segundos depois gritos desesperados são ouvidos da direção dos aposentos da filha. Pai e mãe correm para ver o que ocorrera. Ao chegar à soleira são confrontados com a mais dolorosa cena que pais podem presenciar de seus filhos.
Deitada na cama, inerte e banhada em sangue, jazia Somayya. A mãe gritava da porta, o pai entrou gritando frases do Corão implorando para sua filha acordar mas, era tarde demais. Com os pulsos cortados e uma adaga ainda em uma de suas mãos, ela estava sem vida, vida que não retornaria mais.
Gritos e choros estridentes foram ouvidos pela casa. Um dos empregados, um pouco mais lúcido perguntou a Nagib o que fazer.
Por um instante, Nagib recuperou a lucidez e ordenou que ligasse para Jamal.
Jamal era um alto oficial ligado a segurança interna do país. Diante do acontecido, Nagib queria alguém sério, confiável, competente e discreto para ajudá-lo.
Não demorou e Jamal chegou com mais uma pessoa de sua confiança. Ele conhecia Somayya e ao saber o que aconteceu não acreditou até vê-la jazendo em sua cama, banhada de sangue.
Jamal pediu permissão ao pai para se aproximar. O pai aquiesceu.
Jamal solicitou a sua acompanhante que também se aproximasse, examinasse a cena, fotografasse e analisasse o corpo de Somayya.
A princípio a mãe ficou um pouco reticente mas, com o olhar enérgico do pai, se acalmou.
Hana, a assistente, após a análise inicial, se aproximou de Jamal. Quase sussurrando disse algumas palavras.
Jamal então se voltou para os pais e disse.
– Vamos cuidar do caso policial com a maior discrição. A morte deve ensejar um inquérito que será feito com todo o cuidado e respeito possível. Quanto ao público em geral, acho melhor que não divulgemos a causa mortis de Somayya. Arranjem alguém que possa preparar o féretro para o funeral, tão confiável e discreto como eu.
– Faremos isso, Jamal.
– Mais uma coisa, disse Jamal. Após a retirada de Somayya, ninguém mais entra nesse quarto até eu liberar, entendem? Falou olhando para os pais e os empregados da casa.
– Que Alá se compadeça de sua dor.
Tureb se voltou para os empregados.
– Desejo que vocês que conheciam a amavam Somayya, preparem-na para o funeral. Procurem esconder qualquer sinal de dor e sofrimento em suas faces e sobretudo. Não deixem seus pulsos aparecerem. Serão muito bem recompensados pelo sucesso mas, encontrarão o inferno se falharem.
Jamal voltou ao seu escritório junto com Hana. No caminho, no carro oficial, conversaram.
– Então você não acha que foi suicídio? O que a leva a tirar uma conclusão dessas?
– Jamal, os cortes nos pulsos me parecem errados.
– Como assim, errados.
– Não parecem que foram feitos pelas mãos de Somayya.
Jamal franziu o cenho.
– Primeiramente, não é necessário cortar os dois pulsos para se matar. É doloroso. O segundo corte, quando feito, é irregular e menor que o primeiro pois já há menos força na mão oposta. Além disso, os cortes não saem transversais ao braço. Há um certo ângulo maior em um dos lados.
– Hana! Como alguém deixa outra pessoa cortar os pulsos sem resistência, sem luta. Você viu alguma marca, algum indício de resistência?
– Uma pessoa dopada não reage.
– Hana, não complica minha vida.
– Jamal. Foi assassinato. É isso que vou agora tentar provar com os elementos coletados no local.
– Provas, Hana. Eu preciso de provas.
– Hana, você por vezes me surpreende. Sua experiência é inquestionável. No entanto, peço que analise tudo e confira dez vezes antes da emissão do relatório até que eu possa investigar mais profundamente. Agora, não podemos expedir uma certidão de óbito de morte súbita, vou precisar de tempo. Se algo der errado acabaria com a minha e a sua carreira, ou melhor, nossas vidas, que seriam vividas na cadeia.
Voltarei à casa de Tureb dizer, pessoalmente, que a certidão será lavrada como morte a investigar. Isso será o suficiente. Caso ele queira utilizar de sua influência, alguém maior que nós assumirá a responsabilidade e então estaremos apenas cumprindo ordens.
– Concordo, Jamal. Vou precisar de mais elementos. Você consegue?
– Consigo sim. Afinal o problema agora é descobrir quem foi e porque fez isso.
Jamal então voltou à casa de Tureb. Foi recebido pelos criados e anunciado ao dono da casa. Enquanto aguardava, viu uma estranha movimentação no pátio. Observando mais detidamente ficou assombrado com o que viu.
Sem esperar por Tureb, correu até lá e bradou.
– Parem imediatamente o que estão fazendo. É uma ordem policial.
– Subitamente aparece Tureb também demonstrando espanto com o que estava acontecendo.
– Tureb, pergunta Jamal. Por que minhas ordens estão sendo descumpridas?
– Estava em meu escritório contratando o funeral. Estou vindo agora e estou tão surpreso como você.
Possesso, Tureb perguntou a Nagila o que estava acontecendo ali.
Nagila cai em prantos e afirma ao marido que aqueles objetos, caso permanecessem em casa, seriam um sofrimento muito grande.
– Mulher, gritou Tureb. Podemos ser presos por isso. Você é inconsequente. Bastava manter o quarto trancado.
– Tureb mandou os empregados pegar todos os objetos ali no quintal, cama, colchão, travesseiro e roupas de cama, e colocá-los de volta no quarto de Somayya.
– Jamal, me desculpe. A dor é muito grande e a vontade de ver que aparentemente nada aconteceu, certamente abalaram o juízo de Nagila.
– Tureb. Recoloque os objetos de volta onde estavam e tranque o quarto. Vou considerar você o guardião.
– Jamal, por Alá e pela nossa amizade assim será feito.
Falando em alto e bom som, berrou.
– Mato com minhas próprias mãos qualquer pessoa que entrar naquele quarto. Incluindo você. Falou olhando para Nagila, que gelou.
Assim que as ordens começaram a ser cumpridas, Tureb se voltou para Jamal.
– Mas Jamal, disse Tureb, por que recebemos essa sua nova visita?
– Podemos conversar em particular?
– Claro, vamos ao meu escritório.
No escritório, Jamal disse a Tureb sobre as suspeitas de assassinato.
– Tureb exclamou! Isso é um absurdo. Por mais doloroso que seja, não há como admitir. Todos amavam Somayya, essa hipótese está descartada.
– E se eu disser que tenho provas técnicas. Estamos levando alguns elementos para o laboratório para confirmar nossas suspeitas mas, as primeiras análises indicam para assassinato.
– Não entendi de todo e, a parte que entendi não aceito.
– Há um laudo em execução. Hana vai precisar de outros elementos que provem ou descarte a suspeita.
Nisso um empregado avisa Tureb que outras pessoas chegaram.
– Devem ser as pessoas que pedi que viessem. Fiz isso porque preciso de outros elementos de prova. Felizmente cheguei antes que tudo fosse destruído.
– Fique tranquilo Tureb, essas pessoas que chegaram são da mais absoluta confiança e discrição.
– Que Alá ouça suas palavras.
Jamal saiu do escritório e em conversa com as pessoas, deu instruções para serem seguidas à risca.
– Jamal, disse Tureb. O que eles vão fazer aqui na minha casa?
– Coletar provas entre os objetos que ficaram no quarto de Somayya. Empreste a chave do quarto para eles.
– Se isso trouxer paz a família e a alma da minha filha, faça o que for necessário.
Parte III – O que aconteceu de verdade
Os peritos coletaram todos os elementos que julgaram necessários. Devolveram a chave a Tureb que a guardou em um cofre cujo segredo somente ele conhecia.
Hana agora tinha material suficiente para provar ou descartar a hipótese de assassinato.
Até lá, havia o funeral de Somayya. As exéquias seguiram à risca o costume árabe.
O corpo foi preparado pela família, enrolado em um pano branco. O sepultamento foi feito o mais rápido possível, como de costume.
Inconsolável estava o noivo e sua família que já avisava Tureb que isso não ficaria assim. Eles iriam até as últimas consequências para saber por que Somayya havia se matado.
Tureb pacientemente tentou explicar que ninguém sabia o que havia contribuído para aquele acontecimento. Inteligente, Tureb devolveu a acusação dizendo que alguma desavença com o noivo provocara o suicídio de sua filha.
Nagib indignou-se mas, rapidamente acalmou o semblante dizendo,
– Eu nunca faria nada para magoar Somayya. Que Alá ilumine nossa alma, acalme nossos corações e guie Somayya ao paraíso.
– Amin Ya Rab Al Alameen (Amém Oh Senhor dos mundos), disse Tureb.
Os dias se seguiram. Acertos burocráticos para o desfazimento do contrato de casamento foram realizados e a vida, mesmo com a ausência de Somayya voltou a sua rotina, uma nova rotina.
Um dia desses, pela manhã, durante o café da manhã, um dos criados anuncia a chegada de Jamal.
Ele foi recebido pelo casal que o convidou para o café. No mundo árabe nunca se recusa um convite. Jamal tomou um chá de menta e em seguida disse a Tureb que precisava falar com o casal de forma reservada.
Os três se dirigiram até o escritório, Tureb e Nagila se sentaram mas Jamal permaneceu de pé.
De uma pasta que permaneceu todo o tempo em suas mãos, Jamal tirou um calhamaço.
Era o relatório sobre a morte de Somayya.
– Bem disse ele. Aqui está o resultado de todas as análises sobre a morte de sua filha, Nagila. Falou olhando para a mãe e esquivando-se do olhar do pai.
Nagila gelou, abaixou a cabeça e assim permaneceu.
Tureb protestou.
– Minha filha também, disse Tureb.
– Tureb, Somayya foi assassinada, covardemente assassinada. Foi primeiramente dopada com um forte narcótico e depois teve seus pulsos cortados.
– Mato o infame que me tirou o pedaço mais nobre de mim.
– Tureb, peço que se contenha porque tenho mais más notícias.
– Tureb apresentou um olhar esbugalhado mas, permaneceu calado.
– Me referi a Somayya como sendo filha de Nagila porque era filha apenas de Nagila. Não era sua filha.
– Tureb ameaçou se levantar mas foi contido por Jamal.
– Diga-me tudo que há para contar.
– Tureb, como você sabe, antes do casamento foi realizado o teste de virgindade que a comprovou mas, também foi retirado sangue para outras análises. A ciência está evoluída e, em caso de incompatibilidade sanguínea ente os noivos sabermos de antemão como proceder com filhos.
Temos registros oficiais do seu sangue e de Nagila e não houve compatibilidade com o seu. Em seguida, fizemos sequenciamento genético e você não é o pai de Somayya.
– Tureb deu um grito surdo que pode ser ouvido até na vizinhança.
Nos objetos que Nagila tentou queimar no quintal logo após a morte de Somayya, estava uma roupa dela, com vestígios de sangue. Ela tentou eliminar provas do seu crime e da traição.
Tureb não se conteve. Foi até Nagila e antes que Jamal conseguisse contê-lo, desferiu um tapa em seu rosto.
Nagila chorou, berrou, imprecou.
Tureb foi até sua mesa para pegar uma adaga. Foi contido por Jamal.
– Entendo que você tem esse direito mas, peço que não faça isso, seria pior para você. O assassinato de sua esposa seria um escândalo que precisaria ser explicado.
– Ela será presa imediatamente.
Jamal chamou dois auxiliares que levaram Nagila.
Ela nada mais disse. Nunca mais. Foi julgada, condenada e executada.
Tureb tentou reconstruir a vida.
Pensou consigo mesmo.
“A felicidade que eu queria era para… Amanhã. Foi ontem!”
Nota do autor. A ausência de pontuação no título desse conto, foi proposital.
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