O crime da caixa

Parte I – Um país exótico, folclórico e místico

Morondava é pouco maior que um vilarejo, uma cidade litorânea a sudoeste de Madagascar, sem importância comercial e muto pobre, as pessoas se conhecem e sobrevivem da pesca e do turismo. Lá é possível visitar o lugar mais conhecido do país, a Avenida dos Baobás, e até mesmo tomar um suco feito com a casca ou raiz dessa árvore exótica. Na floresta de Kirindy é possível visualizar várias espécies de lêmures e camaleões.

Todos os dias, guias levam os turistas para conhecer esses e outros lugares do vilarejo, vou chamar Morondava assim, um roteiro que dura horas e permite aos visitantes fotografar e imergir nesse cenário diferente, quando os mosquitos permitem.

Era perto da hora do almoço, o passeio estava ótimo mas, tanto o guia como os turistas estavam famintos. Assim, decidiram retornar ao centro do vilarejo para o almoço.

Quando o jipe em que se encontravam fez uma manobra para retornar, acidentalmente bateu no que parecia ser uma pedra. Não era. Alguns turistas e o guia desceram do jipe para ver a tal pedra mas, o que encontraram era uma caixa que mais parecia uma grande mala semienterrada no terreno algo lodoso.

Por curiosidade desenterraram a caixa, com cerca de um metro de comprimento, 50 centímetros de largura e altura, feita de madeira grossa, envolta em tiras de metal, latão ou provavelmente cobre.

Todos, curiosos perguntaram ao guia se aquilo era parte do passeio, o que foi prontamente negado. Decidiram então abrir a caixa. Assim o fizeram já que não havia cadeado ou qualquer tranca. O que havia dentro, surpreendeu a todos por motivos diversos.

Parte II – A caixa, os costumes e as surpresas.

Boa parte de nós já ouviu sobre um crime da mala. Há relatos em vários países de cadáveres encontrados esquartejados ou não, em malas, baús, caixas ou outro envoltório.

Porém o que aconteceu em Madagascar supera de longe os casos tidos como típicos desse modo de ocultar a vítima.

A vítima é sempre um ser humano, com uma trajetória de vida, experiências pessoais, acertos e erros, atos bons e maus, parentes, amigos, alguém mais velho ou mais moço que não teve dignidade na morte nem tão pouco no destino do seu féretro.

O autor do crime, por sua vez, por melhor imagem social que tenha tido durante a vida cometeu um ato perverso e cruel. O assassinato é um ato cruel e perverso porque em um instante muda a natureza de outra pessoa não importando quão boa ou má fora essa pessoa. Altera a trajetória natural, se é que existe alguma natureza na morte. A vida é natural, a morte é o encerramento, a antítese da natureza. Um segundo após a morte nada mais resta. É o vácuo da existência mesmo que se acredite em vida no além.

O enterro ou a cremação é um ato de dignidade, um ato que permite dar um momento de honra mesmo para aquele que não teve nenhuma em vida.

Colocar um corpo que um dia foi personificado por alguém em um invólucro que não seja a mortalha ou o caixão, com o intuito de impedir esse último ato é a suprema perversão.

O Famadihana, a “virada dos ossos” como é conhecido e cultuado é um ritual malgaxe no qual os parentes retiram os restos ou os ossos de seus entes queridos da tumba a cada 5 ou 7 anos e celebram com danças.

Não ter um corpo para enterrar e posteriormente exumá-lo é abominável. No entanto, existir apenas partes de um corpo é a morte dentro da morte.

Dentro da caixa havia alguns objetos e partes de um corpo, partes que um dia representaram uma vida digna ou indigna, vai saber. Sem uma identificação não há como venerá-lo com o devido respeito.

Apenas vendo o que estava dentro da caixa, sem tocar em nada, o que o guia fez foi chamar a polícia. O passeio agradável havia acabado ali naquele momento o final mesmo seria na delegacia, para onde os turistas seriam encaminhados para prestar depoimento.

Com todo o cuidado possível, as autoridades levaram a caixa para a delegacia e lá a deixaram em uma sala até que a perícia pudesse ser feita com todo o cuidado.

Os depoimentos foram tomados e muito pouco, praticamente nada acrescentaram no sentido de elucidar o mistério. Era uma caixa que estava semienterrada e poderia lá ficar por muito mais tempo caso o jipe não a tivesse tocado. Para o bem da investigação, o jipe não destruiu a caixa, apenas a deslocou.

A caixa, resistente diga-se de passagem, parecia muito antiga, embora fosse impossível, de pronto, estimar uma data precisa.

Dentro da caixa havia um crânio e ossos de um braço que segurava um punhado de sementes de tangena, um sampy com a gravação de um nome, kelimalaza, e uns tocos de carvão.

Sampy é um amuleto da época de Adriamanelo e seu filho, Ralambo, no século XIX. Nesse sampy. Como havia a gravação do nome kelimalaza, poderia indicar que que possivelmente fosse o poderoso amuleto de Ralambo.

A caixa e todos os “pertences” deveriam ser enviados a capital do país, Antananarivo, e de lá para a África do Sul que dispunha de recursos para periciar a caixa e seu conteúdo.

Tomados os depoimentos e feita uma análise no local, nenhum outro dado pode ser acrescentado ao mistério. As autoridades locais e do país iniciaram um levantamento entre a população para verificar se havia registro de alguma pessoa falecida cujo corpo não havia sido encontrado. Se alguém deu falta dos ossos na última Famadihana.

Nada foi levantado. Havia suspeitas de que os restos mortais fossem de outro país e o mar apenas o trouxesse para Madagascar. Essa teoria foi de pronto rechaçada em função do conteúdo da caixa que fazia referência a costumes únicos desse país. A solução era aguardar os laudos periciais.

Enquanto isso, as autoridades fizeram um levantamento de todos os assassinatos e seus autores nos últimos 20 anos. Era uma ação que poderia ser necessária para identificar o autor desse bárbaro ato.

Também foi chamado o professor de História, Niaina, da universidade de Antananarivo. conceituado na comunidade, o professor Tinha conhecimento da história do país, seus cultos e superstições. Ele certamente poderia trazer alguma luz ao mistério.

O professor Niaina, através das fotos revelou que o crânio aparentava ter um rebaixo na fronte, possivelmente devido a uma pancada ou tombo frontal. Era certamente masculino devido a protuberância chamada glabela.

O braço, no entanto era feminino, delgados demais. As sementes de tangena, na mão significava algo histórico pois a ordália da tangena quando ingerida provocava a morte. No século XIX, período da rainha Ranavalona era comum os opositores e acusados de algum crime serem obrigados a ingerir essa mistura. Caso sobrevivessem eram considerados inocentes. Caso contrário, a pena já estava decretada e executada. O sampy, era um amuleto real.

Esse conjunto em uma caixa tinha um forte significado simbólico e político. A datação, o que faltava daria mais pistas.

No entanto o professor foi enfático nas suas declarações às autoridades. Esses restos mortais não são desse século com certeza.

Parte III – A perícia.

Finalmente o relatório da perícia feita na África do Sul e obviamente a caixa e seu conteúdo voltaram às autoridades.

Foi então agendada uma reunião que contou com o professor Niaina, ocasião em que ele pode finalmente analisar fisicamente os objetos encontrados dentro da caixa.

Na verdade, o que se pode constatar na perícia é que os objetos e os restos mortais são do século XIX, o que foi um alívio para os policiais pois não haveria nenhuma investigação criminal a fazer já que o crime já prescrevera e certamente os culpados há muito haviam morrido.

Ainda restava no entanto saber.

– De quem eram os restos mortais

– Houve um crime de assassinato ou roubo dos restos mortais

– O que significava o conjunto dessas evidências

– Qual a motivação.

Os testes de DNA realizados nos restos mortais poderiam ser comparados com algum descendente, mas no atual estágio da sociedade malgaxe não havia recursos financeiros, condições práticas e nem tão pouco religiosas.

A caixa foi enviada para a Universidade aos cuidados do professor Niaina.

Esse se debruçou sobre o relatório da perícia e permitiu a ele fazer suas próprias análises.

No relatório Sul Africano, bastante abrangente diga-se de passagem, todo o conteúdo fora fotografado e impresso em papel mas anexo havia um DVD com as imagens em alta resolução. Também foram feitas imagens em raio X dos restos mortais, do sampy e da própria caixa.

Um olhar cuidadoso e detalhado, digno de quem tem TOC, fez com que o professor Se detivesse nas imagens em raio X da caixa e uma das imagens chamou sua atenção.

A caixa era reforçada com faixas metálicas, cobre para ser mais exato, um elemento nobre e caro, somente disponível à realeza do século XIX. Em uma dessas tiras havia alguma marcação que fora registrada nas imagens mas não relatada no documento.

O professor Foi então até a caixa e destacou a referida faixa. Nas costas, ou seja virada para a madeira da caixa havia algumas inscrições, algo desgastada pela fricção do metal na madeira e pelo tempo. Pouco legível a olho nu mas que fora captado no raio X. Bastava ver a imagem dos escritos em ata resolução. O que foi feito de pronto.

Lá estava a revelação de todo o mistério, claro, com o conhecimento do professor.

Em linguagem malgaxe estava escrito.

“A condenação para Faniry e Masina pelos seus crimes é ter suas partes criminosas reunidas para sempre.”

Não se pôde determinar a exata identidade de Faniry e Masina, nomes algo comuns em Madagascar. No entanto, a maioria dos nomes tem significado.

Faniry significa desejável

Masina significa santo, bento, sagrado.

A partir daí pode-se entender que aconteceu.

Um homem santo, “cabeça”, sucumbiu aos “braços” da desejosa Faniry. O relacionamento proibido à época fez com que Faniry se submetesse a tangena para provar a sua inocência, o que não correu e ambos foram mortos. Faniry pela própria tangena e Masina com um golpe em sua cabeça não tão santa assim.

O caso poderia ser encerrado assim mas, o professor achou melhor relatar às autoridades suas conclusões e assim poderiam investigar nas próximas Famadihanas os restos de pessoas com esses nomes que não continham cabeça ou braço.

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