O jantar anual

Parte I – O palacete

Era um jantar formal. A associação estadual dos direitos dos cidadãos fazia o evento anual para arrecadação de fundos sempre no mesmo local, O Potter Palmer um velho palacete que já fora a prefeitura da cidade de Chicago.

Muitas celebridades já haviam estado sob suas colunas góticas de gosto duvidoso. Nos anos 30, gangsteres estiveram presentes a esse evento, afinal já são quase cem anos que o jantar se repete. Claro, nos primeiros anos era em outro local, já que a prefeitura ainda estava instalada no palacete mas, na década de 50 mudou-se para um local mais moderno.

A arquitetura do prédio não permitia fazer grandes mudanças sem que a estrutura fosse alterada, o que o descaracterizaria. Apenas restaurado, com as paredes e colunas originais era um belo conjunto, sem dúvida o local ideal para uma ocasião formal e apenas isso. Ficava fechado na maior parte do ano.

A preparação que era necessária como a limpeza e organização do evento demorava pelo menos duas semanas consumindo importantes recursos financeiros do estado, que poderiam ser revertidos em doação, caso se realize em outo local menos oneroso. Tradição é tradição e todos diziam que o local, por ser pouco visitado chamava a atenção para o evento e atraia mais donativos.

Políticos, representantes das famílias mais ricas da cidade, do estado e do país sempre estavam presentes. Do presidente ao governador, dos acionistas das maiores corporações aos diretores das maiores multinacionais, logicamente acompanhados de seus familiares e suas recheadas carteiras.

O evento tinha hora para começar e hora para terminar. É praxe e educado assim ocorrer, isso faz com que haja uma aglomeração na entrada do palacete já que todos chegam aproximadamente no mesmo horário. A segurança fica em polvorosa. Não há uma dessas valiosas pessoas que não venha cercada de seguranças para protegê-las, proteger suas carteiras e joias, muitas joias.

Nenhum ladrão ousaria praticar um roubo nesse local nesse dia. Era morrer ou ir para a prisão por um longo tempo.

No entanto, roubo ou furto não eram os únicos crimes que poderiam ser cometidos nesse local. Há outros que são cometido pelos presentes à vista de todos como tráfico de influência, lavagem de dinheiro, corrupção etc.

O jantar ocorreu da forma tradicional com o cardápio impecável.

A sobremesa estava sendo servida quando de uma das dezenas de mesas espalhadas pelo salão ouviu-se um grito feminino.

– Socorram Eva, chamem uma ambulância.

Eva de repente caiu sobre a mesa, apagou, desmaiou. Um médico sentado à mesma mesa atestou que ela tinha sofrido um mal súbito. Deitou-a no chão e começou a fazer massagem cardíaca até que uma ambulância chegasse para melhor atendê-la.

O evento parou, todos ficaram em um silêncio respeitoso quebrado apenas pelas perguntas dos mais distantes da mesa. “O que aconteceu? Quem é?”

Poucos minutos depois os paramédicos chegaram e tomaram à frente no socorro a Eva.

Ela foi colocada em uma maca, depois na ambulância e seguiu para o hospital.

O anfitrião do evento ainda tentou salvar a noite mas, diante dos protestos decidiu encerrar o evento. Foram todos, atônitos e chocados, embora para suas casas. O evento esse ano não arrecadara um único centavo, deixou um grande gasto e ainda acabou de forma súbita e trágica.

 

Parte II – Quem é Eva e porque ela estava no hospital

Eva Bagor, uma mulher de meia idade, muito rica, de tradicional família local. Diziam ser descendente de gangsters que viveram em Chicago durante décadas aterrorizando as pessoas mas, hoje agiam influenciando a economia ou a política. Já seus descendentes usufruíam as fortunas conquistadas de modo vil no passado e no presente. De certo modo, eram intocáveis. Casada com Mark Greene um empresário das comunicações que quando a conheceu era pobre, casou-se com ela a contragosto da família mas, soube envolvê-la sentimentalmente para usufruir da fortuna e através dela construir a sua própria. Na sociedade eram vistos como um casal harmônico e amoroso, tinham dois filhos já crescidos, formados, nada que difira de muitas das famílias vistas em muitos lugares.

Contam as más línguas que a situação financeira de Mark não era das melhores, suas empresas de comunicação já não faturavam como antes, a internet criou outros meios de difusão. Então, viver e ostentar já não era mais uma opção, a questão era sobreviver e não demonstrar fraqueza à sociedade.

Eva tinha personalidade forte e apesar de se derreter pelo marido, o mantinha sob controle rígido, sabia no fundo que ele era oportunista, mulherengo, e com poucos escrúpulos. Ela sabia controlar os ímpetos do marido e controlar sua fortuna com toda a sabedoria adquirida geneticamente.

Ainda tendo irmãos, tios e primos da “famiglia”, Mark não arriscaria sua “dolce vita” correndo o risco de perder Eva, a não ser que ela morresse e como consequência ele herdaria tudo que a ela pertencia.

Assim que Eva chegou ao hospital, foi atendida pelos médicos plantonistas enquanto os melhores médicos do hospital e do país eram acionados para intervir caso fosse necessário.

Os sinais vitais de Eva estavam fracos. Sangue foi coletado para exames, ela foi intubada e examinada de cima abaixo para averiguar se havia alguma lesão visível ou palpável.

Nada foi encontrado, o que significava que o mal que a acometia era interno. Enquanto os exames eram processados, ela foi levada para fazer tomografias da cabeça, do tórax e do abdome.

Na sala de espera, Mark conversava com alguns parentes quando recebeu uma ligação de seu filho mais velho John Bagor Greene desejando informações atualizadas da mãe.

– Filho, sua mãe está sendo examinada nesse momento. As poucas informações que temos é que ela teve um mal súbito vindo a desmaiar. Especula-se que seja um derrame ou uma obstrução coronariana. Eu e você vamos ter que aguardar mais um pouco.

O tempo passou sem respostas. O nervosismo era visível em cada um dos rostos na sala de espera.

Então, o médico que a estava atendendo entrou na sala de espera fechando a porta para criar um ambiente reservado.

– Eva está muito mal, em estado crítico. Ela sofreu o rompimento de um aneurisma cerebral, um AVC. A área afetada é grande. Já foi levada para o centro cirúrgico quando então faremos uma craniotomia para analisar visualmente, drenar o sangue e aliviar a pressão na cavidade craniana.

Realisticamente falando, torçam para o melhor mas, estejam preparados para o pior.

O médico saiu da sala. Todos se entreolharam, ninguém disse uma única palavra e, surpreendentemente ninguém derramou uma única lágrima.

Porque a preocupação por Eva fez os parentes correrem para o hospital e agora diante da gravidade da situação estavam sem reação?

Poucos minutos depois o mesmo médico entrou novamente na sala com uma expressão conhecida de todos. Disse apenas.

– Eva se foi.

Parte II – E agora?

Passado algum tempo, uma pessoa da administração do hospital entrou na mesma sala perguntado por Mark

– Sou eu, disse ele.

– Minhas condolências. Estou aqui para apoiá-lo e a sua família nesse momento difícil. Serei responsável pela burocracia e caso indiquem alguém da sua confiança, posso ajudá-lo nos procedimentos para o funeral.

– Agradeço a sua ajuda. Dê seguimento ao que seja possível e eu acionarei a funerária para cuidar dos detalhes seguintes.

– Nesse momento, levaremos a Sra Eva para a realização da necropsia.

– Como? Vão violar o corpo da minha mulher? Nunca!

– Sr. Mark. É o procedimento legal a ser feito. Há algumas dúvidas sobre a causa mortis.

– Chame novamente o médico aqui. Não suportarei que façam isso com ela.

– Entendo. Vou chamar o médico.

Poucos minutos depois o mesmo médico adentra a sala e se dirige a Mark.

– Eu entendo o seu sofrimento mas, a necropsia é absolutamente necessária. Temos e teremos o maior respeito pela integridade da Sra. Eva.

– Não, não vou permitir isso. Peço que aguarde algum tempo. Eu vou falar com o Diretor de polícia, Alphonse Gabriel, para que possamos evitar esse transtorno.

– Sr. Mark. Independente disso, faremos os procedimentos iniciais para o embalsamento que será completado pela funerária. Será melhor que nós façamos isso do que o pessoal, desculpe a expressão, “papa defunto”.

– Aguarde minhas instruções Dr., peço-lhe encarecidamente.

– O Sr. Tem uma hora. Não havendo contraordem, iniciaremos a necropsia.

– Combinado.

Assim que o médico saiu da Sala, Mark ligou para o Diretor de polícia de Chicago que ficou atônito quando Mark revelou que Eva acabara de falecer.

– O que posso fazer, disse o diretor Alphonse.

– Eles querem fazer a necropsia mas, não permito que violem Eva.

– Lamento, mas não posso interferir, é lei e ademais, o corpo dela será preparado para embalsamamento.

– Emita uma ordem ou faça algo.

– Mark, eu entendo a sua dor mas, nada pode ser feito.

Mark desligou o telefone na cara de Alphonse. Contrariado deixou a sala e o hospital. Ninguém soube para onde ele foi.

Passada uma hora, conforme combinado, não havendo qualquer informação, o corpo de Eva foi levado para a necrópsia.

Os parentes que se encontravam no hospital também foram embora.

Através dos excelentes serviços administrativos do hospital e da funerária, o sepultamento foi agendado para a seis dias após o óbito.

 

Parte IV – Procurando respostas.

Três dias depois Alphonse, o chefe de polícia, recebeu os laudos preliminares da necropsia da Sra. Eva. Tomou um susto enorme ao se deparar com a conclusão. Ela foi assassinada.

A análise sanguínea revelou a presença de uma substância anticolinérgica que provocou o AVC.

Alphonse pediu uma contraprova e de posse dessa informação se dirigiu à mansão Bagor.

Lá chegando, perguntou pelo Sr. Mark. Foi informado que ele não se encontrava mas, como é conhecido da família, informaram que os dois filhos lá estavam.

Alphonse aguardou enquanto era anunciado. Ele foi então acompanhado até o escritório onde se encontrou com os filhos John e David.

– A que devemos a sua visita Dr. Alphonse?

– Caros John e David. Eu gostaria de falar com seu pai. Me informaram que não está em casa.

– Sim Alphonse, nós não temos contato com ele desde que me informou da morte de minha mãe.

– Onde ele está?

– Sinceramente não sabemos. O celular dele está desligado.

– Vou pedir que discretamente o procurem.

– Agradecemos. Há algo em que possamos ajudá-lo, Alphonse?

– Sim. Gostaria de saber se a sua mãe estava fazendo algum tratamento, tomando alguma medicação, se vocês tem alguma receita, resultados de exames, etc.

– Não sabemos mas, se você quiser podemos ir ao quarto dela para ver se há algum medicamento, receita ou algo que o ajude.

Alphonse com o conhecimento e a experiência que possuía, procurou em gavetas, nos armários, no banheiro mas, nada encontrou além de aspirinas e antiácidos. Sinal claro de que ela, do ponto de vista clínico não estava em tratamento.

Despediu-se dos filhos, reforçando que iria procurar Mark.

Voltando ao departamento de polícia, chamou seus assessores mais próximos para uma reunião.

– O que vai ser conversado aqui não deve sair daqui sem que eu permita, OK?

Todos assentiram.

– Temos um caso de assassinato que pode ser um escândalo no país. Eu vou conversar com o Prefeito logo mais. Enquanto isso, requisitem e analisem as imagens de todas as câmeras de segurança do local para levantar alguma pista. Façam uma busca nas redes sociais para ver se alguém postou alguma imagem que revele algo estranho.

Ordem dada, ordem cumprida.

Na reunião que teve com o Prefeito, Alphonse relatou a conclusão de assassinato e que o principal suspeito era Mark.

– Porque Mark, perguntou o Prefeito.

– Mark tem problemas financeiros, Eva morta, ele é o herdeiro de uma fortuna incalculável. Ele tentou evitar a necrópsia e agora está sumido. Em todo caso, estamos examinando todas as imagens que temos do dia do evento para verificar se alguma coisa nos escapou.

O problema é que sem um réu confesso ou uma prova cabal, teremos que interrogar todos os presentes.

– Você enlouqueceu? Interrogar o Presidente, o Governador, os empresários?

– Tenho que realizar o meu trabalho.

– Investigue e me interrogue hoje se quiser mas, segure a barra até o sepultamento de Eva.

– Combinado.

Voltando ao carro, Alphonse recebe uma chamada de um amigo com quem não conversava há um bom tempo.

– Alphonse, como vai você.

– Bem, meu amigo e você?

– Tudo bem comigo mas, não tão bem com Mark Greene.

– Você sabe do paradeiro dele?

– Está próximo a mim.

– Coloque ele para falar comigo.

– Nesse momento vai ser difícil?

– Está morto?

– Vivo mas internado em uma clínica.

– Me dá a letra toda.

– Ele foi encontrado em Beck´s Woods aqui perto de Harvard, andando sozinho, sujo, com a roupa rasgada, delirando.

– Bebeu? Se drogou?

– Nada, estava zerado. Eu o levei até a Clínica St. Eduard onde o banharam, vestiram, alimentaram e realizaram alguns exames. Como estou sabendo o que aconteceu com a mulher dele, acho que pirou. Sei que você é amigo da família e para não criar um escândalo desnecessário, entrei em contato contigo.

– Fez bem, vou até aí com os filhos dele.

Alphonse desceu do carro e entrou novamente na mansão Bagor onde relatou aos filhos a situação do pai. Juntos seguiram até a clínica.

– A situação de Mark era péssima, olheiras profundas, estava magro e não reconhecia ninguém. Quando falava alguma coisa era sem nexo.

– Os médicos que cuidavam dele disseram ao delegado e aos filhos que o pai teve uma reação muito grave a um evento traumatizante. Estava medicado e, de acordo com a experiência deles, em breve recuperaria a consciência voltando ao normal. O melhor era permanecer na clínica por enquanto. Os filhos concordaram vendo que a clínica era muito respeitada no estado de Illinois.

Lá ficaram os filhos enquanto Alphonse retornou a Chicago.

Na véspera do sepultamento, houve uma reunião entre Alphonse e seus assessores, ocasião em que disseram que nas imagens e vídeos obtidos nada de anormal foi notado desde a chegada de Eva até o momento do AVC. Ela, no entanto, parecia um pouco cansada e ao invés de circular pelo ambiente como sempre fazia, ficou sentada a maior parte do tempo.

– Deveria já estar sentindo alguma coisa.

– Estamos sem nada até agora, disse Alphonse. Minha esperança e melhor aposta ainda é Mark.

O funeral e o sepultamento de Eva ocorreu como se esperava. Os filhos muito sentidos e Mark ausente, fato que não passou desapercebido e, os filhos foram transparentes com os presentes. Mark ficou muito chocado com a perda da esposa e estava internado.

Alphonse voltou ao trabalho rotineiro, conversando diariamente com o Prefeito que sempre pedia mais prazo para começar a inquirir alguém.

Parte V – Agora Eva pode descansar em paz.

Em uma manhã, poucos dias após o sepultamento de Eva, Mark surpreendentemente aparece para conversar com Alphonse.

– Podemos conversar reservadamente?

– Mark, você parece bem melhor do que na última vez que o vi. Claro, vamos para a minha sala.

Devidamente instalados no gabinete do Diretor, Mark pediu para fazer um relato.

– Alphonse, eu matei Eva. Por Deus, eu não queria fazer isso. Eu a amava muito. Ela comandava a “famiglia” desde a morte do pai e agora tinha forçado os integrantes a aceitar que eu passasse a comandar a organização. Claro que não aceitaram pois sou de fora e pelas regras isso somente acontece quando todos os membros de uma família estão mortos ou quando há uma guerra entre famílias.

Alguns membros me procuraram e me forçaram a matar Eva, o que neguei prontamente. No entanto, as ameaças, e acredite, eles transforam ameaças em fatos, disseram que escolhesse entre matar Eva ou eles a matariam e a mim e nossos dois filhos. Na máfia, quando alguém de uma família é morta, matam também os descendentes para não deixar vivo alguém que possa se vingar no futuro.

Eu administrei o remédio, no carro, no trajeto entre a nossa casa e o evento. Ninguém saberia disso, só eu e Eva.

Com Eva internada no hospital, ficamos em uma sala eu e alguns da “famiglia” aguardando a sua morte. Tensos, frios, sem sentimentos.

Tentei evitar a necropsia para poupar nossos filhos do desgosto de saber que o pai matou a mãe deles. Enlouqueci de tristeza, pensei em me matar mas, a vontade de contar a verdade fez com que eu me recuperasse. Já conversei com meus filhos e estou aqui para me entregar e denunciar os mandantes. Na prisão, estou mais protegido do que fora. Assim posso relatar detalhes sobre a máfia de Chicago.

– Mark, eu conheço muito bem como funciona a máfia por aqui.

Pelo rádio Alphonse chamou alguém até a sala.

– Vai me prender agora?

Alguém adentrou a sala. Mark o reconheceu na hora. Era o tio de Eva.

– Obrigado Alphonse. Agora é comigo.

– Mark, ingira essa capsula. Não se recuse pois mato seus dois filhos.

Mark tremeu e suou frio como nunca ocorrera. Percebeu que a máfia está enraizada em todos os lugares. Olhou para Alphonse que deu de ombros.

Levantou a cabeça e ingeriu a capsula de cianeto. Em pouco tempo Mark morreu.

Alphonse, para completar a cena, chamou estridentemente apoio médico enquanto o tio de Eva deixava a sala, comentando de passagem com Alphonse.

– Eva estará em paz. A “famiglia” continuará protegida. Obrigado.

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