Senerara

Parte I – Um problema a ser resolvido

Belarus é um país desenvolvido, fronteiriço com a Rússia e economicamente dependente dela. Com 9,5 milhões de habitantes O padrão de vida é considerado muito bom para a região. No entanto, após décadas de um mesmo governo, é natural que haja desgaste e que o modelo econômico e social estejam saturados.

A economia é baseada em três pilares. As minas de potássio, as maiores do mundo. O transporte e refino de petróleo, Belarus é atravessada por oleoduto e gasoduto russos para fornecimento à Europa. A jovem e poderosa indústria de videogames e softwares que tem crescido além do controle do estado.

Sim, o governo de Belarus controla metade da economia e o setor tecnológico é algo que não está no controle estatal.

Desde o esfacelamento da união soviética, os países satélites da Rússia tiveram que se reinventar econômica e politicamente. Alguns se mantiveram fiéis à Rússia enquanto outros se juntaram a países europeus livres.

Essa divisão entre o que é controlado pelo estado e o que é controlado pela iniciativa privada tem gerado sérios problemas entre a dominância estatal e a ganância de empresários e certos personagens do escalão governamental.

Prisões arbitrárias, confisco de bens e assassinatos não são fatos incomuns São encobertos da população em geral, pela mídia, que é controlada pelo governo.

Não podemos nos esquecer que a temida KGB continua ativa em Belarus. Sua sede imponente fica em Minsk, capital do país.

Mesmo com as arbitrariedades do governo, empresários inescrupulosos enriqueceram à sombra do estado, “repartindo” seus bilhões com membros do estado, obtendo, em contrapartida, proteção para continuarem a crescer e assim continuarem a “repartir”.

Um desses empresários é Artióm Askashov também conhecido como Yastreb, falcão, um emergente bilionário atuando nos segmentos de petróleo e tecnologia. Um constante colaborador do governo mas, um homem ambicioso que, segundo análise do governo, estava se tornando mais independente do que a prudência recomendava e o estado tolerava.

A KGB, naturalmente estava cuidadosamente analisando cada passo de Yastreb. Esse por sua vez, com informantes no governo muito bem pagos, sabia em detalhes cada passo dado pelos agentes em sua direção e mais, tinha influência e dinheiro para neutralizar qualquer ataque contra ele. Isso, incomodava o governo que já havia descoberto e aniquilado alguns colaboradores de Artióm no governo. Enfim, era uma batalha diária entre o poder central e Yastreb.

Outros empresários, na verdade homens poderosos que agem à margem da lei, isso porque entendem que a lei pode ser moldada por eles mesmos, já haviam se colocado contra o governo e hoje estão presos, refugiados e pobres em outro país ou embaixo da terra.

Yastreb era muito mais inteligente, rico e influente do que todos os que o antecederam e, não foi controlado quando ainda era possível. Agora, o estado estava refém. Matá-lo era a única resposta.

Como matar um homem que pode antecipar tentativas, que tem dinheiro para contratar os melhores seguranças, ter os melhores refúgios, armamentos e proteções bélicas.

O governo de Belarus tinha a estrutura oficial de segurança incluindo é claro a poderosa KGB mas, ninguém era confiável. Todos poderiam ser “convencidos” a colaborar com Artióm, contra o governo exceto um, Maskim Askashov braço direito e esquerdo e colaborador mais fiel do governo. Já havia dado provas de sua leandade, salvando, com o risco de sua própria vida, o presidente.

Maskim Askashov tinha a solução. A solução tinha nome. Era Senerara.

Parte II – A encomenda

Senerara, em esperanto, infalível, era o codinome de um assassino profissional que trabalhava apenas para governos e poucas pessoas tinham contato com ele. Maskim era um deles.

Maskim ligou para ele com um celular utilizando o aplicativo SKY ECC que criptografa todas as ligações, de ponta a ponta.

A ligação se completou. Do outro lado ninguém falou nada.

– É Maskim. Você pode falar.

Senerara reconheceu o número e a voz de Maskim.

– Ora, ora, disse ele. Estou com esse número desde ontem e você já o tem.

Senerara mudava seu sim card quase que diariamente por questões de segurança. Uma pequena rede de pessoas de alta confiança os repassava aos seus contatos.

– Minha rede anda eficiente. Também, eu os pagos muito bem para isso, caso contrário…

– Eu sei, disse Maskim. Confiança é tudo, além disso, você utiliza a política do cogumelo.

– Exatamente, sorriu. “Todos os cogumelos são comestíveis. Alguns, apenas uma única vez”.

Maskim riu.

– O que é agora?

– Gente grande.

– De casa?

– Sim

– É mais caro.

– Resolvendo, pagamos 50% amais. Metade do convencional na encomenda e o resto após o serviço.

– Então vai dar trabalho, não é?

– Aves são espertas, rápidas e traiçoeiras.

– Se é quem eu penso, é protegida da KGB.

– É essa ave mesmo mas, a KGB vai ficar fora.

– Mas os vizinhos podem não gostar. Senerara se referia aos russos.

– Vão agradecer, acredite.

– Mande o pagamento. Tem prazo?

– 2 semanas

– É pouco tempo para alguém como ele. Pode haver algum efeito colateral..

– Já é esperado. Faça o que for necessário, com a sua discrição de sempre. Por isso estou te chamando para o serviço.

– Você me chama porque sabe que eu sou infalível. Tchau.

– Tchau.

Ambos desligaram

2 semanas era um tempo curto para planejar o assassinato de alguém tão importante e protegido como Yastreb mas, compromisso é compromisso e Senerara jamais falhou antes e nunca foi pego.

Alguém protegido como Artióm não se expõe, não sai de casa, que na verdade é um bunker, por qualquer razão. Quando saí, tem um aparato de segurança que daria inveja ao presidente dos Estados Unidos. Seus seguranças, todos recrutados a peso de ouro em serviços secretos de outros países como Israel, Rússia e China não se corrompiam, não se vendiam e não vendiam informação.

Todo o planejamento deveria levar em conta que Senerara deveria agir como um fantasma. Se fosse visto, não deveria ser identificado e poucas pessoas já viram Senerara ao vivo e as que viram não sabiam quem ele era. Um dos segredos da sua infalibilidade era a invisibilidade.

Como nada nunca é perfeito, em algum momento Artióm ou sua segurança cometeriam algum erro. Uma brecha, apenas uma brecha seria suficiente para ele agir e desaparecer.

A tal brecha ocorreria nos próximos 14 dias? Senerara não tinha certeza. Por isso, precisaria criar uma situação inusitada. Conhecia muito bem o seu, digamos, segmento de atuação. A questão então ficava centralizada em saber quando ele estaria em um determinado lugar e quando a falha de segurança ocorreria.

– Tenho que tirar o falcão da toca. Eu sei como mas vai doer e muito, pensou Senerara.

Yastreb não era casado, tinha namoradas. Porém, tinha uma filha adolescente, Myntrieva, que amava. Era o seu ponto fraco. A menina fazia faculdade em Minsk. Era sempre muito vigiada e protegida mas, em um ambiente grande e com muita gente, matá-la e fugir seria mais fácil.

Senerara foi até Minsk, em transporte privado e se hospedou em uma residência nos arredores da cidade, com pouco ou nenhuma vigilância eletrônica, cedida por um de seus contatos. Obteve também, um galpão na mesma região da casa onde se hospedou.

Ali, ficou horas, planejando o ato que faria Artióm sair de sua casa em dia e horário que ele saberia. Assim poderia planejar mais adequadamente sua fuga. Na verdade, seriam duas fugas.

Sim, porque para tirar Yastreb de casa ele seria necessário matar Myntrieva. Ninguém esperava um ato ousado como aquele mas, esse seria o efeito colateral. Ele não seria notado até aí. A partir daí seria cassado. Depois, para matar Yastreb o planejamento teria de ser outro com dia e hora para acontecer. A questão logística era a fuga. Isso sempre tomava a maior parte do tempo.

No galpão emprestado havia roupas, 2 motos e um tanque com ácido.

A moto, de média cilindrada era de cor branca. Senerara já andara pelo bairro e vira outras motos semelhantes de outras cores. Em especial uma do mesmo modelo e ano na cor preta. Anotou a placa dessa moto.

No galpão, envelopou a moto branca com uma película preta e alterou a placa para o número da placa que vira no bairro. Entre as roupas havia uma jaqueta jeans, modelo que já havia utilizado antes. Essa jaqueta tem um forro térmico e uma bolsa que conecta os dois bolsos laterais. Era o ideal para a ocasião.

Myntrieva estudava na Universidade Estadual de Medicina. Era um grande prédio em um lugar amplo mas, oferecia duas coisas boas. A oportunidade de atirar a longa distância em campo aberto, sua especialidade, e fuga rápida durante o caos que seria instalado.

Senerara passou a vigiar todos os passos que Myntrieva, seus hábitos e horários. Entrou na universidade, conheceu todo o terreno entorno do prédio principal para selecionar o local exato de onde dispararia contra a filha de Yastreb.

 Parte III – Cumprindo o contrato

Após dois dias de planejamento da logística de entrada na universidade, execução do serviço e saída, Senerara estava pronto. Ele escolheu uma segunda-feira para a execução de Myntrieva. Por experiência, sabia que poderia haver um ou mais seguranças diferentes em função da folga semanal e, com dois dias de intervalo os seguranças estariam mais lentos nas reações.

Na Segunda-feira, assim que raiou o sol ele foi até a universidade, entrou no prédio pelos fundos, atravessou todo o corredor lateral, mais uma vez observando as câmeras e saiu pela frente junto a grande praça, local por onde os estudantes chegavam. Atravessou a praça e se postou no outro lado da rua. Lá, colocou o silenciador, na sua pistola .45. que já é uma arma enorme e com silenciador seria facilmente vista assim que ele sacasse.

Senerara na sua jaqueta especial poderia esconder a pistola atravessada em seu abdômen. Assim, poderia atirar com a mão em um bolso falso, bastando para isso apenas se virar de lado para o alvo.  Sua precisão e experiência fariam o resto.

Calmamente ele se dirigiu à praça em frente a universidade, se misturou com outros alunos e pacientemente aguardou a chegada de Myntrieva.

Quando chegou, já havia muitos estudantes em seu redor mas, ele saberia dar um passo à frente ou ao lado para obter ângulo para o tiro.

A porta de trás do carro se abriu e alguns os seguranças ficaram olhando para ela enquanto outros olhavam para os estudantes ao redor.

Assim que ela saiu, abriu-se um ângulo, suficiente para Senerara.

O tiro foi disparado sem som. Myntrieva balançou e caiu. O tiro encontrou o alvo. Um dos seguranças pensando que ela havia tropeçado, a puxou pelo braço. Os demais seguranças se viraram para ver o ocorrido. 2 segundos mágicos que Senerara aproveitou para se enfiar no meio dos alunos.

Tão logo o segurança percebeu sangue na cabeça de Myntrieva, deu o alarme e um dos seguranças sacou a arma e deu tiros para o alto. Forneceu o escape desejado. Todos correram aleatoriamente. Senerar sabia exatamente para onde ir.

Entrou no prédio da universidade, atravessou o corredor, saindo pelos fundos. Lá subiu em sua moto e calmamente se afastou.

Esse assassinato não estava nos planos da polícia. Maskin no entanto percebeu que esse era o efeito colateral.

Na central, para apurar a morte de Myntrieva, chamaram Katerina Spyssieva uma jovem e talentosa policial. Não era bonita, aliás, tinha um porte atlético, grande para a sua altura. Eram mais músculos. Era 2º dan de caratê.

Ela se apresentou abalada, conhecia Myntrieva. O dever falava mais alto. Ela ouviu a instrução: Ache quem fez isso com Myntrieva, não importa quem era seu pai.

No bunker de Artióm a notícia já tinha chegado e ele chamou todos os seguranças e alguns agentes do estado e da KGB sob sua influência.

Aos agentes, pediu que sumissem com os seguranças que tinham deixado matar sua amada filha. Aos demais, ordenou uma caçada total sem se importar com valores ou com a vida de qualquer pessoa que interferisse na sua caçada.

Yastreb percebeu intimamente que a morte de sua única filha não era apenas um recado. Aquilo era prenúncio de algo que viria contra si mesmo. Sentiu um arrepio e suou frio.

– Posso morrer mas, antes mando pro inferno quem matou Myntrieva.

Senerara por sua vez, sumiu ou quase. Ele voltou ao galpão, retirou sua calça, sua bota, seu capacete e a jaqueta. Abriu cuidadosamente o tanque com ácido e os jogou lá. Também retirou as películas que mudaram a cor da moto e o número da placa dando o mesmo destino dado as roupas.

Ele precisava agora visitar o cemitério onde Myntrieva seria enterrada. O local estaria qualhado de seguranças e autoridades.

Com sua moto, agora com as características originais, fez e refez o caminho entre o bunker de Artióm e o cemitério, ida e volta.

– Está mais difícil do que imaginei. Vou precisar ser competente e arriscar mais do que de costume, pensou Senerara. Pelo menos eu agora sei onde e quando ele vai estar.

O funeral foi marcado para três dias após o assassinato. Yastreb, iria de qualquer modo. Seus seguranças e autoridades recomendaram que não fosse ou mandasse algum dublê. Ele não aceitou a sugestão.

No dia do funeral, logo cedo o cemitério foi cercado pela polícia, serviço secreto e por seguranças do Próprio Artióm. O trajeto entre sua casa e o cemitério seria acompanhado pela polícia e por um aparato sem precedentes.

Senerara acompanhou todo o trajeto sem ser percebido pois muitas pessoas acompanhavam o enterro da menina que fora brutalmente assassinada. Era uma comoção pública e o excesso de pessoas na rua favorecia Senerara. Ele podia ousar mais, não se esconder tanto.

A cerimônia foi realizado com toda a pompa. Nada aconteceu com Yastreb. Os seguranças através dos comunicadores comemoraram. Estavam aliviados.

Yastreb voltou para casa. Ao sair de seu carro, três zumbidos atravessaram a barreira dos seguranças e atingiram fatalmente Artióm e os dois seguranças que o acompanhavam.

O serviço estava feito.

Senerara já sabia que o número de seguranças no perímetro externo ao bunker estava menor. Todos foram ao cemitério. Ele então pulou o muro, assim como fizera para entrar, subiu em sua moto novamente alterada, indo até o galpão onde destruiu em ácido suas roupas, as películas utilizadas na moto e a arma do crime. Pegou uma maleta, saiu pelos fundos do galpão, andou por algumas ruas, pegou um taxi e foi para o aeroporto,

Mais uma balbúrdia em Minsk. A polícia foi acionada e a KGB mas, ordens superiores ordenaram que a investigação seguisse de forma protocolar. A fuga de Senerara para fora de Belarus estava protegida e silenciada.

Alguns dias se passaram, Senerara recebera o valor combinado e agora, um telefonema de Maskim.

– Meu caro, serviço perfeito. Agradecemos.

– A menina entrou como parte dos planos em função do prazo.

– Tudo bem, disse Maskim.

– Precisando, sabe como me encontrar.

 

Parte IV – O fim, de tudo

Estamos agora em Paris. Algumas semanas se passaram. Alguém chega ao Café de La Paix, se senta em uma mesa com o tradicional toldo verde e branco, pede um Capuccino grande. Assim que chega, ela se levanta e aborda um sujeito na mesa ao lado. Sem ser convidada, senta-se ao lado dele e fala em bom françês.

– Bonjour. Je vous ai compris.

Ele fingiu que não entendeu.

– O que a Srta. Está fazendo na minha mesa. Não a conheço.

– Eu o conheço, Infalível Senerara, ou deveria chamá-lo de Senerara Stulta, estúpido em esperanto.

Ele não moveu um único músculo da face.

– Está enganada.

– Eu me apresento. Eu me chamo Katerina Spyssieva. Ex-agente da polícia de Belarys, Fui originariamente designada para encontrar o assassino de Myntrieva. Acabo de encontrá-lo.

– Srta. Está perdendo o seu e o meu tempo.

– A KGB e agentes secretos do meu país me vigiam 24 horas por dia. Sabem até mesmo o que eu sonhei na noite passada. Sentada com você nessa mesa, já sabem quem você é.

– Ninguém conseguiu acusá-lo por todos os seus assassinatos. Serviços que você executa com perfeição. Faz jus ao seu codinome. Aqui, hoje, acaba a sua carreira. Pouco me importa se você prestou bons serviços a diversos governos. Até agora, a impunidade lhe foi garantida.

– No entanto, você não é infalível, é Stulta, sabe por quê?

– Te pagaram o dobro ou apenas te deram um bônus por cometer dois assassinatos pelo preço de um?

Senerara pela primeira vez, franziu a testa.

– Eles queriam que você matasse Myntrieva e Artióm, exatamente nessa ordem. Com ela viva, toda a fortuna viria para as mãos delas. Inocente e contrária às ações do pai, estudava medicina para ajudar os mais necessitados. Imprudente, poderia facilmente der ludibriada, criando assim vários milionários. Matando-a primeiro, Yastreb não teria herdeiros. Matando o pai logo depois, todos os bens e valores vão para o governo, ou para algumas pessoas do governo. Você fez o que eles quiseram, mais barato. Você é Stulta.  Alias, poderia ter matado Artióm entrando pela porta da frente da casa dele. Você teve toda a cobertura para entrar e sair dos locais que desejasse, até mesmo da casa e do galpão que utilizou. As provas da sua permanência em Belarus já foram devidamente destruídas. Um infeliz proprietário de um moto branca já está preso no seu lugar.

– Sabe Senerara, eu não poderia estar aqui em Paris livre como estou. Tive que negociar com o governo. Eu entrego você e como contrapartida ganho uma vida livre fora de Belarus. Iria atrás de você até no inferno. Eu conhecia Myntrieva muito bem, se é que me entende e isso é um problema no meu país.

– Katerina, descobri agora que somos irmãos. Você também é uma Stulta. Você continua trabalhando para eles não oficialmente, é claro. Você acha que foi designada para procurar o assassino dela por sua competência?  Eles sabiam do seu relacionamento e seu desligamento das forças policiais, foi bom para eles mas, você continua viva. Até hoje. Isso é um problema para eles.

– Se isso acontecer, reencontro Myntrieva. Quanto a você, vai encontrar todos que já matou. Você acredita em vida após a morte?

Katerina não esperou pela resposta, levantou-se, deu alguns passos na calçada. Em seguida ouviram-se gritos vindos do café. Dois corpos jaziam nas ruas de Paris.

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